No Rio, moradores estão ficando doentes devido a violência, afirma Fiocruz

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Moradora da comunidade do Jacarezinho, na Zona Norte do Rio, há pelo menos 50 anos, a dona de casa Márcia (nome fictício), de 52 anos, sempre conviveu com os tiroteios e guerras. No entanto, numa manhã de março de 2016, tudo mudou. Durante um confronto, Márcia teve a casa invadida por policiais militares que estavam encurralados. Acuados pela ação dos traficantes, os PMs disseram que a mulher era obrigada a deixar que eles usassem a sua casa como base. Após o episódio, Márcia enfrentou problemas emocionais, deixou de sair de casa, de dançar e decidiu procurar ajuda. Foi diagnosticada por um psicólogo como vítima de estresse pós-traumático e segue se tratando até hoje.

Assim como Márcia, parte da população que vive em comunidades conflagradas fica doente e nem sabe o motivo. O caso dela é um dos que embasaram uma pesquisa com funcionários do campus de Manguinhos da Fundação Oswaldo Cruz (Fiocruz) e com moradores da favela, vizinha à instituição, pesquisadores criaram Cartilha de Prevenção à Violência Armada em Manguinhos, um material informativo que aborda o impacto da violência armada na saúde de moradores e trabalhadores e ficará disponível para download no site da Fiocruz.

— Eu nem sabia o que era estresse pós-traumático. Após os PMs invadirem a minha casa, eu não tinha vontade de fazer mais nada por causa do desânimo e os pensamentos pessimistas. Cheguei a pensar que estava com depressão, mas um psicólogo disse que não era. Vejo que muitos conhecidos que moram na comunidade têm problemas de pressão alta ou tomam remédio tarja preta. Eles nem sabem que tudo isso pode ter a violência como causa. Lembro muito bem do dia em que tudo aconteceu. Foi muito estranho. Eu não conseguia ter reação. Apenas obedecia as ordens dos policiais. Era como se eu fosse apenas um personagem de um jogo de videogame. Com muitos tiros e sangue — relata Márcia, acrescentando que um policial ficou ferido na ação dentro de sua casa.

Além de informações sobre a rede de proteção social a vítimas de violência, medidas preventivas e de tratamento, a cartilha apresenta indicadores do impacto na saúde dos moradores de Manguinhos, Maré e Jacarezinho. Segundo pesquisa, o sofrimento psíquico foi o agravo mais percebido entre 88 moradores desses territórios entrevistados: 80% responderam que a violência com uso de armas de fogo afeta sua saúde, de sua família ou pessoas próximas. Entre os entrevistados, funcionários da Fiocruz e também alunos do programa Educação para Jovens e Adultos (EJA).

Página da cartilha da Fiocruz
Página da cartilha da Fiocruz

A cartilha também visa a trazer ao público informações que comprovam o sofrimento psíquico e adoecimento da população local e de profissionais da saúde, educação e segurança por conta dos confrontos armados. Informar e apresentar as bases legais para a busca por tratamento de todas as pessoas que são vítimas da violência com uso de armas de fogo.

Os agentes da segurança pública também são impactados. De acordo com dados da Comissão de Análise da Vitimização Policial da Polícia Militar do Rio de Janeiro que constam do material, todo dia de três a quatro policiais são afastados com diagnósticos psiquiátricos na corporação. Em um levantamento referente ao ano de 2018, quase metade dos 1.320 militares licenciados em decorrência de problemas de saúde foi afastado por reações ao estresse grave (567).

Na pesquisa, 91% dos entrevistados afirmaram que a violência armada e impacto na educação escolar de moradores de favelas. Entre as principais narrativas de moradores estão: “Meu irmão e família ficam sem aula pelo tiroteio [Manguinhos]”, “Insegurança ao retorno escolar [Manguinhos]”, ”Tirei minha neta da creche porque botaram uma boca de fumo perto e começou a ter tiroteio quando aparecia a polícia [Manguinhos]”, “Um mês quase todo sem aulas por causa dos tiros”, “Fico com medo pra ir para a escola com essa violência [Manguinhos]”, “Saí muito de baixo de tiroteio pra buscar meu filho na creche na Maré”, “Tiroteio sempre no horário de buscar meu filho [Maré]”, “Medo de não poder voltar para minha própria casa[Maré]”.

O sofrimento psíquico, agravos mentais e emocionais foram mencionados 31vezes por entrevistados por afetarem familiares, amigos e vizinhos.

A cartilha também dispõe de um capítulo dedicado ao Transtorno de Estresse Pós-Traumático (Tept) construído pela pesquisadora do Centro Latino-Americano de Estudos de Violência e Saúde da Escola Nacional de Saúde Pública Sérgio Arouca (Claves/Ensp), Fernanda Serpeloni. Outro item esclarece dúvidas comuns entre moradores sobre como proceder durante a abordagem policial, revista e invasão de domicílio.

Segundo o geógrafo Leonardo Bueno, do Programa de Promoção de Territórios Urbanos da Cooperação Social (Ptus), o pré-lançamento da cartilha inicia uma campanha de prevenção à violência armada em Manguinhos a ser feita no território, mas também junto a autoridades e instituições ligadas à saúde, segurança pública e direitos humanos. Além da Fiocruz, o material — que foi construído junto a policiais do conselho comunitário de segurança local, moradores e trabalhadores — será lançado também em espaços de participação social de Manguinhos. O pesquisador, que também é morador de Manguinhos, um dos objetivos da cartilha é a garantia de direitos. Ensina, por exemplo, como a pessoa deve reagir a uma abordagem policial. Um dos locais de lançamento da cartilha será o 22ºBPM (Maré).

— A ideia da cartilha surgiu da constatação de que os mais afetados pela violência são os moradores das favelas e os agentes de segurança pública. Surgiu também da necessidade ter um material informativo para todos. Essa cartilha é resultado do esforço da Fiocruz para avançar em diagnósticos e pesquisas sobre o tema, relacionando a questão da violência armada como questão de saúde pública; e, ao mesmo tempo, é fruto das experiências concretas de prevenção que construímos junto a moradores, trabalhadores e movimentos sociais — explicou Leonardo Bueno.

A técnica em laboratório Cátia Cristina Santos do Nascimento, de 51 anos, funcionária da Fiocruz e moradora de Manguinhos, ajudou na elaboração dos questionários da pesquisas usando a sua própria experiência de vida.

— Acho que a cartilha será muito útil para os moradores entenderem alguns dos seus males. Me surpreendi que os moradores ainda não fazem ligação entre a sua saúde e a violência. A cartilha vai criar uma rede de diálogo dentro da comunidade muito importante. Acho que as secretarias de Saúde devem usar isso como dados para avaliar a saúde da população — avalia Cátia.

ALGUMAS DICAS DA CARTILHA

Policial pode me revistar?

– Em regra, não. Somente se houver fundada suspeita.

O que é fundada suspeita?

– O Brasil, por ser um dos países mais racistas do mundo, de acordo com a filósofa Djamila Ribeiro e o filósofo Rodrigo França, precisou de uma lei que delimitasse (ou tentasse delimitar) o que é fundada suspeita a fim de evitar (ou tentar limitar) o arbítrio. Por isso, o artigo 240, § 2o , do Código de Processo Penal, restringiu a possibilidade de abordagem, em resumo, aos casos em que haja suspeita de que a pessoa esteja na posse de arma proibida, objetos ou papéis que apontem que o abordado acabou de praticar (ou esteja praticando) algum crime.!

Posso ser preso se for abordado e estiver sem documento?

– Não. O que existe – e isso precisa ficar bem esclarecido – é a obrigatoriedade de qualquer cidadão fornecer à autoridade policial informações sobre a sua identificação (nome, filiação, profissão), desde que – justificadamente – solicitado por ela.

O policial pode pedir a senha do meu celular ou acessar minhas conversas?

– O policial somente pode olhar seu celular com sua autorização ou com ordem judicial. Se por ventura o policial obrigar o cidadão ou cidadã a entregar a senha ou mostrar as conversas do celular, sem sua autorização ou sem ordem judicial, isto será ilegal e constituirá crime de abuso de autoridade.

O policial pode entrar em minha residência?

– Somente se ele possuir um mandado de busca e apreensão assinado por um juiz e, também, somente de dia. Se você não estiver em casa, ele poderá entrar somente acompanhado de ao menos dois vizinhos, que assinarão um relatório dizendo se concordam com o que as autoridades afirmam terem feito. O policial também poderá, excepcionalmente, entrar em sua residência se ele estiver perseguindo uma pessoa que acabou de cometer um crime e esta pessoa, durante a perseguição, entrar ou se esconder na sua casa; também poderá entrar em sua residência para te socorrer, em casos de desastres ou emergências médicas.

Você tem lembranças traumáticas, por conta dos tiroteios?

– Atenção aos sintomas, pois você pode estar com Transtorno do Estresse Pós-Traumático (TEPT). As memórias são acompanhadas de reações emocionais e físicas intensas, tais como: coração acelerado, garganta seca, sudorese, medo e culpa. Também é possível ter pesadelos, acordando no meio da noite e tendo dificuldades para voltar a dormir. Podem estar presentes sentimentos de tristeza, impotência e vergonha, além de depressão, muitas vezes levando ao isolamento social. Evitar essas memórias, ignorando ou tentando pensar em outra coisa exige muito esforço, o que acaba por trazer mais sofrimento a longo prazo. Algumas pessoas podem se sentir muito irritadas e até mais agressivas do que o costume.

Fonte: Jornal Extra

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