Queda na escada, batida por freada brusca no carro, escorregão no tapete. As desculpas para as vítimas de violência doméstica ao chegarem em busca de atendimento em um hospital são muitas. Neste cenário, surge a personagem Cleo, uma enfermeira, trabalhadora, mãe zelosa e feminista que luta pela igualdade de direitos e ajuda mulheres que sofrem abusos. Este é o tema de “A filha da mãe” (Editora ITmix) , um livro em quadrinhos sobre a violência doméstica e o feminicídio, da jornalista e escritora Tinda Costa.
O livro será lançado hoje (25) não por acaso. É o Dia Internacional para a Eliminação da Violência contra as Mulheres, instituído pela Assembleia Geral da Organização das Nações Unidas (ONU), em 1999. No Brasil, é uma data que deve ser lembrada e debatida por conta dos altos índices de agressão contra mulher. De acordo com o último estudo do Instituto de Pesquisa Econômica e Aplicada (Ipea), em parceria com o Fórum Brasileiro de Segurança Pública, em uma comparação de 2016-2017, a taxa de mortes de mulheres cresceu 5,4% no Brasil. E 28,5% dos homicídios de mulheres aconteceram dentro de casa.
Na primeira sinopse escrita por Tinda, a protagonista era uma professora. Mas a autora mudou por considerar que teria mais chance de uma enfermeira encontrar outras mulheres que também sofreram abusos.
— Não me inspirei em ninguém em particular. Mas me lembrei de algumas enfermeiras que conheço e que admiro quando fui fazer o perfil da Cleo. A meu ver, a enfermagem é uma profissão que exige compaixão, sensibilidade, benevolência, além de conhecimentos técnicos. Alguns profissionais que eu conheço são assim, por isso acredito que há mais Cleos espalhadas pelos centros de saúde do país. Elas se envolvem com os casos, ajudam quem precisa — diz ela, que questiona o veto do presidente Jair Bolsonaro ao projeto de lei que obrigava hospitais das redes pública e privada a notificar à polícia, em até 24 horas, todos os casos — suspeitos ou confirmados — de violência contra a mulher:
— Sei que não há consenso sobre essa medida, mas a meu ver, a lei seria positiva, pois poderia melhorar a qualidade das estatísticas e, com isso, as políticas públicas. As vítimas de violência dão entrada nas emergências como se tivessem se acidentado, caído da escada, batido com a cabeça no chão ou com a cara na porta depois de tropeçar e cair. Enfim, mesmo que não tenha sido o agressor que tenha levado a vítima ao hospital, raramente as pessoas se envolvem e relatam a verdade. Por isso, é importante os agentes de saúde serem informados sobre o assunto, mas ainda mais relevante é esses agentes informarem a polícia sobre aquela ocorrência suspeita. O que, infelizmente, não podem fazer em todos os casos de suspeitas de violência contra a mulher, pois a exigência é só nos casos confirmados — opina ela.
Escrita em 2013, a ideia inicial de “A filha da mãe” era ser uma série de televisão com 12 episódios, mas não houve interesse das TVs abertas em produzir. O tempo passou e a escritora conheceu Alexandre Magalhães, designer gráfico que atua também fazendo storyboard para cinema. Daí surgiu o romance gráfico.
— Acho que o romance gráfico pode agradar leitores de todas as faixas etárias. Mas os mais jovens são mais abertos a essa literatura visual. Acredito que a leitura pode ajudar — às mulheres e também aos homens — na medida que a história d’A Filha da Mãe incita uma reflexão e pode contribuir para o debate sobre a questão do machismo, da discriminação e da violência contra as mulheres — diz ela.
Ao acolher as mulheres vítimas de violência no hospital, a protagonista trata questões feministas e defende que as tradições religiosas têm “papel fundamental na perpetuação de pensamentos e práticas que inferioriza a figura feminina na sociedade”. De acordo com a autora, seu objetivo é incentivar as mulheres a procurar saber mais sobre a história do feminismo no Brasil.
— O movimento feminista trouxe muitos avanços para as mulheres, mas nós precisamos ter consciência de que ainda há muito a ser feito para conseguirmos realmente termos igualdade de direitos e, principalmente, respeito. Não adianta a lei, se ela não “pega”, não é mesmo? Acho importante sempre lembrar aos jovens que só em 1932 as brasileiras conseguiram direito ao voto e que só a partir de 1962, com o novo Código Civil, as mulheres desse país deixaram de ser definidas como incapazes dependentes do pai ou do marido. Faz menos de 60 anos que terminaram com a tutela dos maridos sobre as suas esposas.
A heroína do livro sobreviveu a um relacionamento tóxico. Ao se ver livre do agressor, Cleo se reinventa, volta a estudar e a trabalhar. Realidade distante da autora, que nunca viveu a violência de perto.
— Nunca fui vítima de agressão, nem física nem psicológica. Mas convivi com mulheres que eram ou foram agredidas pelos seus companheiros. Foram elas que me inspiraram a escrever. E a minha indignação ao ver diariamente notícias de feminicídios nos jornais me moveu a fazer algo contra essa situação deplorável — diz ela, que pretende ir a universidades, escolas e comunidades para debater e também promover o livro.
Fonte: O Globo