Há 60 anos, o circo da morte de Niterói

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A última sexta-feira, 17 de dezembro, traz o peso, o drama, uma tragédia que jamais será esquecida, principalmente pelos niteroienses. A data ficou tatuada na alma da cidade desde 1961, quando Niterói foi cenário da maior tragédia em número de mortes do Brasil, o incêndio do ‘Gran Circus Norte-Americano’. Outra triste marca: foi a maior tragédia ocorrida em um circo em todo o mundo.

Foram 503 mortos e mais de 1.500 feridos. Muitos levam as sequelas no corpo, o trauma que jamais esquecem. Milhares de outras pessoas envolvidas direta, ou indiretamente com o incêndio, revivem as cenas dramáticas de 1961. A tragédia do circo completa hoje 60 anos.

Seria um exemplo para que as autoridades passassem a exercer pesadas fiscalizações em locais que recebem público, para que 1961 jamais voltasse a acontecer. Mas em 27 de janeiro de 2013, na cidade de Santa Maria, no Rio Grande do Sul, 242 pessoas morreram e 636 ficaram feridas no incêndio da Boate Kiss, causado por negligência, irresponsabilidade e falta de fiscalização. Os responsáveis só foram julgados e condenados oito anos depois, na semana passada. Entre vários desleixos, a boate não tinha saída de emergência.

O jornalista e escritor Mauro Ventura, autor do livro “O espetáculo mais triste da Terra”, falou com o jornal A TRIBUNA e lamenta que nada tenha mudado. “Achei que as pessoas pudessem aprender um pouco. Depois que passa a comoção de uma tragédia a fiscalização começa a afrouxar. Os erros se repetem e o Brasil chora novamente. Essa tragédia do circo não serviu de lição e perpetuamos os mesmos erros. Me sinto frustrado pois no livro eu mostro toda a cadeia de irresponsabilidade, incompetência, desrespeito, negligência e imprudência para as regras de segurança. Hoje completamos 60 anos do incêndio do circo, ano que vem completamos nove anos do incêndio da Boate Kiss, onde também não tinha saída de emergência”, frisou.

O dia 17 de dezembro detona uma série de emoções na moradora de Tribobó, em São Gonçalo, Maria José Pedroza, de 71 anos. Dona Zezé, como é carinhosamente conhecida. Ela foi uma das sobreviventes da grande tragédia e tinha apenas 11 anos quando teve 90% do corpo queimado com queimaduras de 3º grau. Ao todo foram 20 dias em coma, 15 cirurgias e oito meses de internação.

“É impossível esquecer o que passei. Na cabeça passa um filme do horror com tudo o que vivi. Fui pisoteada e fiquei em cima de muitas pessoas, sentindo o baque de outras caindo em cima de mim. Lembro da sensação de calor do fogo e é tão difícil acreditar nisso tudo. Meus pais sofreram muito na época. Minha mãe não queria que eu fosse e meu pai deixou, acompanhada pela afilhada da minha mãe. Até hoje sinto minha pele repuxar, fiquei com uma mão atrofiada e preciso tomar um remédio para oxigenar o cérebro até o final da vida pelo excesso de fumaça que respirei”, lembrou muito emocionada a professora. O trauma transcende Dona Zezé. Suas duas filhas nunca foram ao circo e nem os seis netos e os dois bisnetos.

Indiretamente, a tragédia acompanha muitos niteroienses. É o caso da aposentada Ana Cristina Morais, 65 anos, que lembra como chorou quando, com 5 anos, queria ir ao circo. “Meu pai não tinha dinheiro para comprar o ingresso e não me levou. Eu chorei muito. No dia do incêndio, eu lembro da confusão que foi na minha rua e meu pai ajudou no resgate. Ele recolheu gelo na caçamba da caminhonete que ele tinha. Passava pela rua e as pessoas iam colocando gelo na carroceria. Ele levou muitos feridos para os hospitais, inclusive o Hospital Antônio Pedro. Eu tive um livramento”, contou emocionada.

A mesma correlação aconteceu com o jornalista Mauro Ventura, que lançou em 2011 o livro-reportagem ‘O espetáculo mais triste da terra’, resultado de uma apuração que durou dois anos e meio sobre a história do incêndio. Ele se interessou pelo assunto após dois episódios em que soube do incêndio. A primeira vez foi após passar pelas pilastras onde o profeta Gentileza escreveu as frases “Gentileza gera Gentileza”, no início da avenida Brasil, no Rio. “Aquelas frases me despertavam curiosidade. Mas a única coisa que eu sabia é que ele tinha perdido a família em um incêndio de um circo em Niterói”, contou. O segundo momento foi após ler a autobiografia de Ivo Pitanguy. “Ele conta que o atendimento das vítimas do circo tinha sido a experiência que mais o marcou. Pensei logo que eram dois personagens, tão conhecidos, que tiveram a vida impactada pelo incêndio. Mergulhei nesse assunto para escrever o livro, um assunto que repercutiu em escala mundial e tinha sido esquecido”, contextualizou.

Incêndio teria sido motivado por vingança

Existem várias versões sobre a causa do incêndio, que variam desde criminoso até negligência. A causa oficial, que foi investigada na época, julgada e sentenciada, é que o Gran Circus Norte-Americano, em 15 de dezembro de 1961, instalou sua tenda em Niterói e para a montagem de toda a estrutura foram contratadas algumas pessoas. Um homem, Adilson Marcelino Alves, apelidado de ‘Dequinha’, teria trabalhado na montagem e foi demitido por incompetência. Ele teria tentado entrar no circo, no dia do espetáculo, e foi barrado por um funcionário na entrada. Os dois brigaram e ele disse que voltaria e colocaria fogo no circo.

No dia 17, dia do espetáculo das 14h30min, o circo tinha mais de 3 mil pessoas, e na última apresentação do trapezista, a cobertura do circo começou a pegar fogo, que se alastrou muito rápido por ser de algodão, coberto de parafina. O trapezista foi o primeiro a gritar ‘fogo’. Desceu da armação metálica e conseguiu sair do circo. O espaço não tinha saída de emergência e as pessoas começaram a se pisotear na tentativa de fuga, já os funcionários conseguiram sair pela ‘entrada/saída’ do picadeiro, as tradicionais cortinas que escondem a passagem dos artistas e animais.

Com as chamas se propagando, parte da cobertura desabou em cima da elefanta Semba, que correu desesperada, rasgou o tecido e conseguiu sair do espaço. A abertura foi a salvação para muitas pessoas que conseguiram escapar pelo grande buraco. No entanto, dezenas de pessoas foram pisoteadas pelo animal.

‘Dequinha’ e mais dois cúmplices (Bigode e Pardal) foram julgados culpados pela justiça, ele foi condenado há 16 anos de prisão, fugiu da cadeia e acabou sendo assassinado. Os outros dois também foram presos.

A história que virou livro rendeu para Ventura o prêmio Jabuti e o livro foi relançado pela Companhia das Letras no final de novembro. O escritor lembrou alguns momentos da produção da obra. “Essa tragédia foi uma lembrança que incomodou muitas pessoas. Tive dificuldade de conseguir escrever sobre isso pois as pessoas não gostavam de falar sobre o assunto. Foi um trauma coletivo e individual muito grande. Mas quando as pessoas resolveram falar foi terapêutico para elas. Funcionou como uma catarse”, lembrou.

Hospital Antônio Pedro Fará homenagem às vitimas

A Universidade Federal Fluminense vai fazer nessa sexta-feira (17), às 10 horas, uma homenagem aos mortos do incêndio, seus familiares, também os sobreviventes e profissionais do Hospital Universitário Antônio Pedro (Huap) que foram marcados pela tragédia: ’60 anos do Incêndio do Gran Circo Norte-Americano e a História do Huap’.

O evento será híbrido, de forma online, e para convidados presencialmente no Anfiteatro Aloysio de Paulo, no segundo andar. Mauro Ventura vai comentar o tema. Também vão falar sobreviventes, servidores da unidade de saúde e acadêmicos de medicina e do Diretor da Faculdade de Medicina (Prof. Adauto Dutra Moraes Barbosa) e Superintendente do Huap (Prof. Tarcísio Rivello) e Reitor da UFF (Prof. Antônio Cláudio Lucas da Nóbrega).

Crédito: Raquel Morais – Jornal A Tribuna

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