Quando o cadastro das chaves do Pix começou, no início neste mês, o comerciante Tiago Bezerra tentou registrar o CPF para usá-lo como identificação em seu banco principal. Para sua surpresa, descobriu que o documento já havia sido cadastrado pelo Mercado Pago — algo que ele afirma não ter solicitado.
“Não fiz nenhum cadastro no Mercado Pago, nem mesmo o pré-cadastro”, diz. Foi apenas ontem, depois de uma semana tentando em vão excluir o CPF, que Bezerra conseguiu reverter o processo. Ele não é um caso único.
Dilmar Ribeiro, que usa o Mercado Livre para fazer compras, também aponta problemas no uso de seus dados. Ele pré-cadastrou o CPF como chave do Pix no Mercado Pago, mas diz que a empresa confirmou automaticamente o registro, sem sua solicitação. Depois de vários pedidos à companhia e uma reclamação no Banco Central (BC), Ribeiro conseguiu desfazer o registro na tarde de ontem.
Relatos como esses se multiplicaram nos últimos dias nas redes sociais e mostram o quão acirrada está a disputa por clientes no Pix, já batizada de “guerra das chaves”. As fintechs vêm adotando postura agressiva para atrair usuários por meio do serviço de pagamentos instantâneos porque veem nele uma forma de estreitar o relacionamento.
Os grandes bancos, por sua vez, têm investido em campanhas publicitárias para convencer os clientes a fazer o cadastro com eles das chaves mais cobiçadas — CPF e celular — e assim evitar que migrem para a concorrência.
O Mercado Pago havia cadastrado 4,7 milhões de chaves no Pix até quarta-feira à noite, segundo lista divulgada pelo BC. Foi a segunda instituição que mais registrou clientes no serviço, atrás apenas do Nubank, com quase 8,1 milhões de cadastros.
A fintech conhecida pelos cartões de crédito roxos também foi alvo de reclamações nas redes sociais de clientes que afirmam ter sido cadastrados indevidamente. O Valor constatou que, no cadastramento, o Nubank oferece automaticamente CPF, celular e e-mail já preenchidos como chaves de identificação no Pix. Se não quiser registrar alguma delas, cabe ao cliente excluí-las — a opção existe, mas é preciso fazer o processo com atenção. Do contrário, o usuário poderá ficar com várias chaves conectadas à fintech.
Terceiro colocado no ranking, com 4,3 milhões de chaves registradas até quarta-feira, o PagBank/PagSeguro foi outro alvo de queixas de usuários, mas em menor escala. Num post do Instagram, @rosangelasl afirmava que estava tentando cancelar um cadastro feito na instituição e não conseguia. O Valor não conseguiu contato com a usuária.
Os números das instituições com mais cadastros no Pix causaram polvorosa no mercado ao ser divulgados pelo BC porque colocaram as fintechs bem à frente dos grandes bancos, embora estes tenham bases de usuários muito maiores. O mais bem colocado deles é o Bradesco, em quarto lugar, com 3,7 milhões de cadastros.
Comendo poeira
A diferença mostraria, para alguns observadores, que as principais instituições financeiras estão “comendo poeira” no engajamento de clientes. Outros, porém, veem indícios de que os novos competidores estão forçando a mão e cadastrando chaves não solicitadas ou induzindo os clientes a registrar mais de uma chave com eles para prejudicar a concorrência.
Segundo um alto executivo de um grande banco, as fintechs tiram proveito do fato de que são submetidas a uma regulação mais branda que as instituições financeiras. A assimetria é um tema que vem causando incômodo crescente no setor. “Enquanto os bancos têm inúmeras amarras e pagam a conta, elas [fintechs] fazem o que querem com os clientes porque o Bacen favorece”, afirma.
Para usar o Pix, é preciso cadastrar chaves de identificação, e cada uma delas funcionará como o “apelido” de uma determinada conta. Com isso, será possível informar apenas o apelido do destinatário ao fazer uma transferência ou pagamento, em vez dos habituais números de agência e conta. Cada pessoa física pode cadastrar até cinco, entre CPF, celular e endereços de e-mail. Para pessoa jurídica, o limite é de 20 apelidos.
CPF/CNPJ e número de celular são as chaves mais disputadas por bancos e fintechs porque são as mais valiosas para os clientes e são as informações principais junto ao BC. Não por acaso, o Santander criou um sorteio de R$ 1 milhão para quem registrar no banco CPF e telefone móvel. O C6 Bank dará pontos em seu programa de fidelidade a quem deixar o CPF como chave na instituição.
Conforme as regras do BC, cada chave só pode ser atrelada a uma conta. Porém, CPF, celular e e-mail podem ser cadastrados todos em uma mesma conta, se o usuário o desejar. Só que, ao gastar todas as fichas em um local, o cliente não poderá se cadastrar em outra instituição. Os usuários poderão rever periodicamente as chaves — por exemplo, retirando o CPF como fator de identificação de uma conta e atrelando o documento a outra.
Questionado pelo Valor, o Banco Central disse que “monitora e supervisiona continuamente o processo de cadastramento de chaves Pix, já tendo iniciado processos formais de fiscalização de participantes”.
O regulador informou que, se forem identificadas irregularidades, incluindo eventuais cadastramentos indevidos, os infratores serão punidos “nos termos da regulação vigente”. O total de chaves cadastradas estava em 36,6 milhões ontem. Não foi informado o número de usuários.
O Mercado Pago afirmou, por meio de nota, que “não cadastra uma chave Pix sem o consentimento do usuário”. De acordo com a fintech, os clientes são informados sobre a possibilidade de cadastrar e-mail, CPF/CNPJ para que possam escolher quais registrar e, no app, conseguem gerenciar suas chaves.
O Nubank disse, também por meio de nota, que “todas as chaves foram cadastradas com a devida autorização dos clientes”. “Preparamos cuidadosamente um fluxo prático e simples de comunicação e, no dia 5/10, enviamos pedido de consentimento via aplicativo a todos os clientes que haviam feito o pré-cadastro”, afirmou.
O Nubank acrescentou que priorizou o cadastro de apenas uma chave por usuário neste momento, já que o BC limitou o fluxo de registros para garantir a estabilidade do sistema. De acordo com a fintech, algumas chaves ainda estão sendo processadas.
O PagSeguro informou que todos os cadastros no Pix “foram realizados exclusivamente após confirmação dos clientes em nosso app ou site”. A instituição disse que não registrou reclamações de cadastros indevidos. “Se houver, trataremos imediatamente.”