Uma mulher fingiu ser uma pessoa com transtorno do espectro autista para ficar sem máscara de proteção contra a Covid-19 dentro de um shopping no Recife e postou um vídeo nas redes sociais incitando os seguidores a fazerem o mesmo. A Polícia Civil investiga o caso, ocorrido na quarta-feira (23), que provocou revolta na internet e notas de repúdio de instituições.
No vídeo, postado no Instagram, a bióloga Nathasha Borges contou que foi a uma reunião no Shopping RioMar, no bairro do Pina, na Zona Sul do Recife, e ficou sem máscara “o tempo inteiro”. A proteção, comprovada cientificamente como forma de prevenção à Covid-19, é de uso obrigatório em locais públicos de Pernambuco desde maio de 2020, incluindo em shoppings.
Também na gravação, ela afirmou que entrou em uma loja do shopping e novamente fingiu ser uma pessoa com autismo. “‘Moça, a máscara’. Aí, eu disse: ‘Eu sou autista, posso não’. O primeiro fez assim: ‘Você está sozinha?’. E eu disse: ‘Estou procurando a minha mãe, ela foi ali'”.
“Pronto, está todo mundo doido, a gente se faz de doido. Pronto. Está tudo certo. Olhe, a solução de um doido é outro doido na porta. Pronto, pronto, resolvido, não usei minha máscara hoje para nada, nem para entrar no tal órgão que eu vim fazer o negócio”, declarou Nathasha no vídeo
A reportagem entrou em contato com Nathasha Borges pela rede social onde ela postou o vídeo questionando se a bióloga queria falar com a reportagem sobre o ocorrido. “Não acho interessante”, ela respondeu. Em nota, a Polícia Civil afirmou que “ela será intimada a prestar depoimento na Delegacia de Boa Viagem”, na Zona Sul do Recife.
O Shopping RioMar se pronunciou sobre o caso em duas notas. Na primeira, disse que recebeu com perplexidade o vídeo e que atua “sempre pautado pelo respeito, com ações voltadas ao debate sobre inclusão”, além de ter considerado as atitudes da bióloga “lamentáveis sob diversos aspectos”.
No segundo comunicado, o Shopping RioMar declarou que “repudia quem usa de uma causa justa e coletiva para obter vantagens individuais”. Além disso, explicou que o segurança “partiu do pressuposto da boa-fé solicitando a presença de um acompanhante, com uma abordagem educativa, uma vez que não tem poder de polícia”.
O g1 entrou em contato com a loja citada por Nathasha Borges no vídeo para solicitar um pronunciamento sobre o caso, mas não recebeu resposta até a última atualização desta reportagem.
Repercussão
O vídeo de Nathasha Borges foi postado como stories, que têm duração de 24 horas, e foram republicados como um reels no Instagram, que não tem prazo para desaparecer da rede social. Até a tarde desta quinta-feira (24), a gravação acumulava mais de 100 mil visualizações.
A atitude da bióloga causou revolta nas redes sociais. “É deprimente ver uma pessoa usar e debochar do autismo. Sem noção!”, afirmou uma internauta nos comentários da postagem.
Os stories em que, originalmente, o vídeo foi publicado foram removidos pelo Instagram por irem contra as regras da comunidade “sobre símbolos ou discursos de ódio” e sobre “assédio ou bullying“.
Em outra postagem na mesma rede social, a bióloga disse que a lei “proíbe” o uso de máscaras para pessoas com autismo. “Dá uma estudadinha nessa lei, diga que você é autista e pare de usar sua focinheira, porque é melhor você ser autista do que ser cachorro”. No entanto, a lei não determina a proibição, e sim autoriza a dispensa do uso de proteção em caso de impossibilidade.
Em uma postagem posterior, ao responder um internauta, Nathasha Borges escreveu: “Peço desculpas aos que se sentiram diretamente atingidos, autistas e familiares”.
Instituições repudiam
Segundo o advogado Robson Cabral de Menezes, Nathasha Borges pode ter cometido, ao menos, três crimes. Ele é integrante da Comissão de Defesa dos Direitos das Pessoas com Deficiência da Ordem dos Advogados do Brasil (OAB) em Pernambuco e, no Conselho Federal da ordem, é vice-presidente da Comissão de Defesa dos Direitos das Pessoas com Autismo.
“Quando ela finge ser pessoa com autismo sem ser para obter benefício indevido, comete crime de estelionato […]. Várias vezes faz comentários pejorativos, ‘para doido, só outro doido, tem que se fingir de doido’ e isso também é atitude discriminatória, ferindo diretamente os direitos das pessoas com deficiência […]. Na legenda, ela incita os seguidores dela a fazerem o mesmo e postarem para ela isso aí, ou seja, ela entra em outro crime, que é o artigo de incitar publicamente a prática de crime”, afirmou o advogado.
O Ministério Público de Pernambuco disse que tomou conhecimento do caso após uma denúncia à Ouvidoria, mas que a investigação deve ser iniciada pela Polícia Civil. A reportagem também entrou em contato com a Polícia Civil, que não se pronunciou até a última atualização desta reportagem.
“Todos os crimes têm possibilidade de reclusão, com pena menor que cinco anos. Pela tipificação, ela possivelmente pagaria penas alternativas. Mas mais importante que isso é ela ser punida, para saber que esse tipo de situação não vai ficar impune”, afirmou o advogado, que é um dos fundadores da LIGATEA, grupo formado por advogados que defendem direitos de pessoas com autismo.
A LIGATEA publicou uma nota sobre o caso e disse que repudia veementemente as postagens de Nathasha Borges. “Não podemos e não vamos no calar, vamos denunciar e lutar junto com a comunidade autista para combater esse tipo de prática”, afirmou o grupo.
“É necessário esclarecer que a prerrogativa legal que autoriza a não utilização de máscaras por autistas em ambientes públicos, contida na Lei federal nº 14.019, art. 3º, § 7º, só tem seus efeitos para os casos em que o autista não consiga fazer uso do EPI [equipamento de proteção individual]. Logo, aqueles que têm condições de utilizar a máscara em ambiente público assim deve proceder, para sua própria proteção e das demais pessoas que frequentam aquele ambiente”, disse a OAB.
Com relação ao comentário de Nathasha Borges no qual ela compara uma pessoa com autismo a um animal (“melhor ser autista do que cachorro, para não usar focinheira”), a OAB afirmou que se trata de um “conteúdo discriminatório à pessoa com deficiência, ferindo, assim, as determinações dos Arts. 5º e 88 da Lei Brasileira de Inclusão (Crime de discriminação)”.
A OAB também falou sobre a gravidade dessa atitude de Nathasha Borges. “Em um momento em que o Brasil ainda trava uma luta diária contra os efeitos de uma pandemia que já vitimou mais de 658 mil cidadãos e cidadãs, não utilizar máscara de proteção em ambiente público e ainda incitar pessoas a adotarem a mesma postura é um claro descumprimento ao protocolo de vigilância sanitária do governo do estado”.
Crédito: Portal g1